quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Texto de Ricardo Abramovay no Jornal Valor Econômico de hoje...

Eficiência e eqüidade podem, sim, andar juntas
Por Ricardo Abramovay,
Valor 04/09/2008

"Civil Economy - Efficiency, Equity, Public Happiness" -
Luigino Bruni e Stefano Zamagni.
Peter Lang Publishing. 282 págs.


Mercados não conhecem fraternidade e sua compreensão
exige que sejam encarados como expressões de uma
verdadeira mecânica dos interesses, da qual resulta a
capacidade de satisfazer (de forma não planejada) as
necessidades humanas: amigos, amigos, negócios à
parte. O pressuposto básico é que os indivíduos cumpram
os contratos em que se envolvem e que suas relações se
pautem exclusivamente pela tentativa de extrair -
honestamente, é claro - o maior benefício possível dos
vínculos econômicos que estabelecem com os outros. A
prosperidade é o resultado não antecipado do incentivo
para que indivíduos e empresas busquem as
oportunidades que lhes parecem as mais adequadas. Sob
esse ponto de vista, mais importante para que a
economia e os mercados em que se apóiam funcionem é
que sejam respeitados como esferas institucionais
autônomas da vida social, livres da influência da religião,
da política, das amizades, das clientelas, dos monopólios
e, em última análise, da própria cultura.
Essa caricatura grotesca faz parte, até hoje, da formação
básica dos economistas, no mundo todo. Felizmente,
contra ela ergue-se - no interior mesmo do chamado
"mainstream" do pensamento econômico - uma poderosa
vertente à qual pertencem Luigino Bruni e Stefano
Zamagni. Zamagni é autor de um respeitado manual de
microeconomia, de uma história do pensamento
econômico e de uma coletânea sobre a "economia do
altruísmo", na qual obteve a colaboração dos ganhadores
do prêmio Nobel Gary Becker e Amartya Sen. Luigino
Bruni, além de historiador do pensamento econômico, é
membro dessa corrente contemporânea que questiona a
idéia de que aumento de renda é necessariamente
sinônimo de melhoria no bem-estar. Seu vínculo com a
abordagem das capacitações ("capability approach") de
Amartya Sen e Marta Nussbaun é explícito.
O termo economia civil tem três significados básicos. O
primeiro contesta o mito de que o nascimento da
economia moderna é marcado exclusivamente pelas
trocas impessoais, anônimas, desprovidas de vínculos
comunitários e funcionando tanto melhor quanto menos
contaminadas pela política, pela ética ou pela moral.
Bruni e Zamagni mostram a força do humanismo cívico
do "Quattrocento" italiano e a profunda unidade existente
entre economia e caridade nas mais notáveis
organizações econômicas do início do Renascimento. Essa
tradição aparece mais tarde na obra de Antonio Genovesi,
iluminista da escola de Nápoles, segundo o qual a
ausência de laços cívicos de confiança entre os cidadãos,
de compromissos morais relativos à maneira de organizar
a sociedade, é um obstáculo ao desenvolvimento do
mercado. Reciprocidade e dádiva, por um lado, mercados
e contratos, por outro, não são mundos hostis que a
modernidade tratou se separar, mas estão
permanentemente imersos uns nos outros.
A idéia de economia civil se insurge contra esse mito da
idade moderna de que a esfera dos interesses
econômicos pouco tem a ver com a do civismo, da
qualidade dos vínculos sociais entre os cidadãos. É a
razão pela qual, no subtítulo do livro e em todo seu
conteúdo - e contrariamente a uma forte tradição da
microeconomia contemporânea - eficiência e eqüidade
são apresentadas conjuntamente e não como
manifestações inevitáveis de dilemas ("trade-offs") em
torno dos quais as sociedades farão suas escolhas de
Sofia.
Daí vem o segundo significado de economia civil. Civitas
(e "polis", do grego), não se reduz a atributos como o
respeito à lei e o cumprimento dos contratos. Não se
trata apenas da dimensão negativa da liberdade (ser livre
de, ou seja, estar isento de dependências e
constrangimentos), mas de sua forma positiva, "ser livre
para": liberdade para realizar o necessário à afirmação de
sua própria pessoa. E é nesse sentido que a economia
civil resgata a tradição aristotélica da boa sociedade,
aquela que oferece às pessoas as liberdades para que
possam desfrutar de uma vida construtiva e interessante.
A tradição utilitarista de Bentham reduziu o conceito
aristotélico de felicidade ("eudaimonia") a utilidade. "Esse
movimento reducionista, afirmam Bruni e Zamagni, é a
mais séria causa de empobrecimento da economia
contemporânea." Ao se definir a economia como ciência
da utilidade, da raridade ou da alocação de recursos
escassos entre fins alternativos, foram afastadas as
categorias de pensamento necessárias a uma reflexão
mais abrangente e generosa a respeito da interação
social. Com isso, o sentido, a razão de ser, os fins morais
últimos da relação entre os homens e o mundo material
de que dependem deixaram de pertencer à esfera da
ciência econômica.
O resultado está num dos maiores dilemas, não só da
ciência econômica, mas da vida econômica
contemporânea, ao qual o livro dedica um rico e didático
capítulo. Estudos levados adiante nos últimos 30 anos
revelam o que o economista e demógrafo americano
Richard Easterlin chamou de "paradoxo da felicidade" na
economia. Suas pesquisas indicam, basicamente, que não
há relação entre riqueza objetiva e sentimento de
felicidade. A metáfora da esteira rolante é útil para
explicar o fenômeno: corre-se para não sair do lugar. O
que essas pesquisas mostram é que a felicidade está
muito mais associada a relações humanas enriquecedoras
do que à pura obtenção de mercadorias. É óbvio que não
se trata de ignorar a satisfação das necessidades dos
indivíduos, mas, sim, de contestar a idéia de que o
permanente aumento de renda e consumo é a base para
que ampliem sua realização pessoal.
O terceiro sentido da economia cívica evoca as
organizações não governamentais, sem finalidades de
lucro, e, num certo sentido, a própria economia solidária.
Mas não se trata de considerar esse segmento
isoladamente, como uma espécie de lado nobre da vida
social, por oposição à economia privada. Esse dualismo
maniqueísta bloqueia a percepção de que "a fisiologia, o
funcionamento normal, a vocação do mercado é
representar um momento da vida civil". É claro que o
mercado pode ser e, de fato, tem sido profundamente
anticívico e destrutivo, com a concentração da renda e a
devastação ambiental, por exemplo. Mas essas patologias
serão tanto mais severas quanto mais o mercado estiver
separado do humanismo cívico que, segundo Bruni e
Zamagni, está na sua origem. Público e privado, mercado
e Estado, contrato e reciprocidade, interesse e dádiva: as
ciências sociais podem convergir para superar essas
oposições e, por aí, como mostra a economia civil,
contribuir para a construção de um mundo em que os
valores éticos que mais prezamos não estejam em
confronto com o funcionamento real da vida econômica.


Ricardo Abramovay é professor titular do
Departamento de Economia da FEA/USP,
coordenador de seu Núcleo de Economia
Socioambiental e pesquisador do CNPQ (
www.econ.fea.usp.br/abramovay )

2 comentários:

Pedini disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Pedini disse...

Fantástico esse artigo do Abramovay. Tenho estudado a economia solidária e ainda não tinha visto uma análise dela a partir desse ponto de vista.